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Moeda comum entre Brasil e Argentina? Entenda

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O ressurgimento da proposta de criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina foi noticiado nas últimas semanas após uma reunião entre o atual ministro Fazenda, Fernando Haddad, e o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli. Esta não é a primeira vez em que o assunto é colocado em pauta entre os membros do Mercosul. Na década de 1980, por exemplo, no governo do ex-presidente José Sarney, já ocorriam conversas com o ex-presidente da Argentina, Raúl Alfonsin, sobre a criação de uma moeda escritural batizada de “gaúcho”, mas a ideia não avançou. Paulo Guedes, ex-ministro da Economia, também chegou a comentar sobre o assunto em um evento em Davos, na Suíça, no ano de 2019, levantando a possibilidade de presenciarmos no futuro uma moeda comum entre Brasil e Argentina, uma espécie de “peso-real”, que eventualmente facilitaria uma maior integração entre os países latino-americanos. Este tema tem sido bastante polêmico na mídia e divide a opinião de economistas. Mas o que de fato está em questão? 

Primeiramente, precisamos diferenciar o que é uma moeda única e o que é uma moeda comum. A característica de uma moeda única é substituir as moedas locais dos países por uma mesma moeda. O principal exemplo é o Euro, que substituiu o Marco alemão, o Franco francês e as demais moedas dos países que aderiram à Zona do Euro. O Euro levou aproximadamente 50 anos para sair do papel. Já o uso de uma moeda comum não substitui, necessariamente, as moedas de cada país, sendo um mecanismo facilitador para realização de conversões e transações bilaterais.  

O que foi apresentado, até o momento, é um projeto inicial de estudos entre Brasil e Argentina, as duas maiores economias da América do Sul, sobre como uma nova moeda comum denominada “sur” (sul), que a princípio viria de forma digital, poderia expandir o comércio entre as regiões e reduzir a dependência do dólar americano. Deste modo, o “sur” funcionaria em paralelo com o real brasileiro e o peso argentino, como uma referência monetária para transações e liquidações comerciais e financeiras (não seria uma espécie de euro latino-americano). Assim, eliminaria a necessidade de duas conversões, de reais para dólares e posteriormente de dólares para pesos (ou vice-versa), que implicaria em menores spreads bancários e em redução de burocracias cambiais, além de eliminar a flutuação do dólar. Fornecedores e consumidores receberiam ou pagariam em “sur” e depois converteriam para real ou para qualquer outra moeda conversível ou ainda estabeleceriam contratos diretamente em “sur”.  

Importante mencionar que este projeto não deve acontecer da noite para o dia e envolve questões fiscais, análise da situação das economias e definição do papel dos bancos centrais (quais dos países teria maior peso nas decisões?). Supondo que um projeto do tipo seja implementado e que tenha sucesso, seria um primeiro passo para posteriormente convidar outros países do bloco a integrarem o projeto e eventualmente, no futuro, criar uma moeda única para todo o Mercosul.  

Vamos agora fazer uma análise mais profunda. Por que este tema voltou a ser debatido em 2023? Em qual contexto macroeconômico global está inserido? Observe que após a guerra entre Rússia e Ucrânia, que iniciou em fevereiro de 2022, houve o bloqueio pelos EUA das reservas internacionais de dólares da Rússia, com a exclusão do sistema de pagamentos SWIFT. Deste modo, dificultou a liquidação das transações de compra e venda de commodities pela Rússia, que são negociadas em dólares e não em rublos, estes com pouca demanda. Hoje em dia, além de uma moeda ser uma unidade de conta, meio de troca e reserva de valor, descobriu-se que é também uma arma de guerra. Então este é um dos motivos pelos quais outros países começaram a buscar alternativas de negociação não dependentes do dólar.  

O principal motivo, no entanto, é que os nossos vizinhos enfrentaram uma inflação de 94,8% em 2022, com o Banco Central do país imprimindo cada vez mais dinheiro para bancar os gastos públicos, o que gerou escassez de reserva de dólares e dificultou o comércio entre os países, dado que o governo não consegue garantir a operação das empresas. Ao final de 2022, a taxa de juros na Argentina chegou a 75% ao ano. Além disso, a maior parte da dívida Argentina é dolarizada, o que fragiliza ainda mais a economia e aumenta o risco de calote. A título de comparação, o Brasil encerrou o ano de 2022 com inflação de 5,79% e taxa de juros de 13,75%. Para os argentinos, imagino que de fato, a criação de uma moeda comum seria positiva. Afinal de contas, se pudessem dar as cartas em um “Banco Central sul-americano” teriam poder para criar mais moeda, se necessário, e continuar com a atual irresponsabilidade fiscal e impressão de dinheiro desenfreada, o que não funcionaria no longo prazo. Como lidaríamos com inflações tão diferentes? 

Do ponto de vista do Brasil, acredito que alternativas em relação a criação de uma moeda comum ou única possam ser buscadas para que haja maior integração comercial com a Argentina e outros países do Mercosul. De fato, para nós, brasileiros, seria mais interessante se liquidássemos estas transações em reais, visto que nossa moeda é mais forte, aumentaria a demanda por reais e por consequência manteria o poder de compra do real frente ao dólar por mais tempo. Na verdade, já existe um sistema de pagamentos em moeda local (SML) formalizado por Brasil em Argentina em 2008, onde há a troca direta de reais por pesos argentinos, sem a necessidade de moeda intermediária, como o dólar, em transações internacionais de bens e em operações de importação e exportação. Assim, o próprio SML é encarregado de efetivar a conversão, a partir de uma taxa pré-estabelecida. Dado que este sistema já existe, imagino que popularizar e aprimorar o seu uso seria uma melhor opção. 

Com base nos fatos acima apresentados, antes de pensarmos na criação de uma moeda comum ou até na unificação de moedas, é necessário que os países participantes cumpram objetivos similares de crescimento, estabilidade e emprego, que são variáveis extremamente ligadas à política econômica. Para Paul Krugman, economista norte-americano e vencedor do prêmio Nobel, a implementação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina seria uma “ideia terrível” e complementou que “Uma moeda compartilhada pode fazer sentido entre economias que são os principais parceiros comerciais um do outro e são semelhantes o suficiente para que não enfrentem grandes choques assimétricos”. 

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A educação financeira é uma histórica lacuna no nosso modelo de ensino, mas felizmente existem dezenas de iniciativas que trabalham para fechar esse gap, e o projeto desta coluna é mais uma delas. Temos como missão traduzir para você aquele “Economês” frequente no mercado financeiro, além de desmistificar os paradigmas mais comuns do cotidiano de um investidor. Vamos tratar de temas atuais e como eles podem impactar diretamente a maneira como você investe. Vamos propor reflexões sobre o cenário e como tirar o melhor proveito dele. Nosso intuito é trazer um ponto de vista do lado de dentro do mercado, como cada tema é tratado e discutido na frenética mesa de operações – um mundo fascinante. Estaremos aqui todas as segundas-feiras, sempre tratando do que é relevante para você e seus investimentos. Juntos vamos fazer investimentos mais inteligentes!"

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